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Ditadura militar: lembrar para não repetir

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Movimento que deu início aos 21 anos de repressão no Brasil completa cinco décadas no dia 31 de março. Além do rastro de violência, com centenas de mortos e desaparecidos, representou atraso político e aumento da desigualdade social no país
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São Paulo - “Afogavam minha cabeça em um tanque com água e me queimavam com cigarro aceso para que eu confessasse onde estavam as armas do Sindicato dos Operários Navais. As armas que tínhamos eram a inteligência e a língua. Faço votos de que essa desgraça da ditadura militar nunca mais aconteça. Esse passado não pode ser esquecido e ir para a lata do lixo.” O depoimento é do ex-operário naval Benedito Joaquim Barbosa, uma das vítimas da ditadura instalada no Brasil após o golpe de 1964, que completou 50 anos nesta segunda, 31 de março.

“Durante cerca de dez dias, minhas crianças (de quatro e cinco anos) me viram sendo torturada na cadeira de dragão, me viram cheia de hematomas, com o rosto desfigurado. Eles falavam que os dois estavam sendo torturados. Disseram: ‘Nessas alturas, sua Janaína já está dentro de um caixãozinho’. Disseram também que eu ia ser morta”, conta outra vítima, Maria Amélia Teles, que também teve o marido e a irmã, grávida de oito meses, presos e torturados pelas forças de repressão do Estado.

Os depoimentos de Benedito e Maria Amélia foram dados à Comissão da Verdade de Niterói e à Comissão Nacional da Verdade, respectivamente. Eles são testemunhas de uma época em que discordar era crime. Muitos não sobreviveram.

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, tem uma lista oficial de 362 nomes, entre mortos e desaparecidos. Mas grupos de camponeses e indígenas solicitaram à Comissão Nacional da Verdade (CNV) a inclusão de mais de 2 mil nomes à lista.

Muito bancários estão entre os nomes. A secretária-geral eleita do Sindicato, Ivone Maria da Silva, destaca que a categoria empreendeu grande resistência à ditadura, mesmo com a perseguição a diversos trabalhadores. “O Sindicato sempre lutou e continuará lutando em defesa da democracia em nosso país e por uma sociedade mais justa.”

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Resgate – Em artigo publicado na Revista do Brasil de março, o jornalista Mauro Santayana aborda a importância do aniversário do golpe como forma de se resgatar o passado e evitar que ele se repita. “Pelos abusos cometidos desde o primeiro momento, e que se multiplicaram depois com o fortalecimento do radicalismo antidemocrático e da repressão mais sanguinária, era para se tratar de um episódio já execrado pela sociedade brasileira”, diz o colunista sobre o regime militar que governou o país entre 1964 a 1985.

Mas não é o que ocorre, segundo Santayana: “Como há 50 anos, ‘forças ocultas’, que já não se importam em não parecer ocultas, querem pintar o Brasil como se estivéssemos à beira do abismo, para defender velhos e perigosos caminhos de salvamento da Pátria. (...) Pela internet desferem-se ataques à democracia e crescem as pregações golpistas, com a defesa do recurso à violência e à tortura, crescem no mesmo meio em que vicejava nos anos 1960. Como ocorria às vésperas de março de 1964, multiplicam-se publicações, ‘filósofos’ e ‘comentaristas’ que professam um anticomunismo esquizofrênico e patológico – já que claramente psicótico e desprovido de qualquer contato com a realidade –, como se estivéssemos em plena Guerra Fria, e se sustentam pela distorção da história e da verdade, como se vivêssemos em outro planeta, situado em hipotético universo paralelo.”

Atraso – Para o cientista político Caio Navarro de Toledo o que ocorreu em março de 1964 foi “um golpe contra a incipiente democracia política brasileira nos pós-1946; um movimento contra as reformas sociais e políticas defendidas pelo governo João Goulart (presidente deposto pelo golpe); e uma ação repressiva contra a politização dos trabalhadores e o promissor debate de ideias que, de norte a sul, ocorria no país. O golpe de 1964 teve consequências perversas e nefastas no processo de desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil que ainda se refletem nos tempos presentes”.

Desigualdade – Nem mesmo na economia a ditadura representou avanço. O professor da Esalq (Escola Superior de Agricultura) e especialista em distribuição de renda no Brasil, Rodolfo Hoffman, destaca que, por trás do propagado “milagre econômico” veio o aumento da desigualdade social. O Índice de Gini, que mostra o nível da concentração de renda no país, era de 0,5 em 60, subiu para 0,56 em 1970 e para 0,59, em 1980 (quanto mais perto de zero, mais igualitário).

Ele atribui o fato principalmente a três fatores: “a drástica queda no valor do salário mínimo real durante o período; a diminuição do poder de barganha dos sindicatos de trabalhadores, que foram objeto de frequentes intervenções; e a instituição do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) em 1967, substituindo o sistema de indenização por despedida injusta e de estabilidade do emprego da CLT. O FGTS, segundo o professor, “veio facilitar ao empresário a rotatividade dos empregados, particularmente daqueles não-qualificados.”

Democracia – Para o advogado Pedro Dallari (foto), coordenador da Comissão Nacional da Verdade, é preciso conhecer o que ocorreu nesse período para valorizar a vida em democracia. “Acho que a Comissão e seu relatório final têm muita importância porque ajudará na realização do direito que toda sociedade tem à memória e à verdade. A sociedade que conhece sua memória se protege mais de violações à democracia. O quadro democrático instaurado em 1985, confirmado com a Constituição de 1988, representa um amadurecimento em relação ao período anterior. O país amadureceu. Tem hoje um quadro institucional mais sólido e isso deve ser mantido.”

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade será divulgado em 10 de dezembro de 2014, data em que se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

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Andréa Ponte Souza – 31/3/2014
(Atualizada às 10h27 de 1º/4/2014) 

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